quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Não há determinismo

Quando a criação humana desperta para um grande sonho e sobre ele lança a sua alma, todo o universo conspira a seu favor”. Goethe Sei que serão os poetas, os escritores, os filósofos, os músicos, os pintores, os cientistas... os primeiros a sonhar, a inventar e a mudar a realidade. Sei que há um potencial e uma redenção para a humanidade que passa por aqui, pelo que formos capazes de criar. Criar do nada, da parte ou do todo. A importância da escrita é incomensurável (Foto: Istock)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Preciso de saber quem é o meu pai, pede a jovem

- Perguntei, tantas vezes, pelo meu pai. Quero saber quem é o meu pai?
- O teu pai morreu - ouviu, tantas vezes, a mãe dizer-lhe.
- Mas, quem é? Podes dizer-me quem é, devo ter outros irmãos, outra família...
Uma nuvem de silêncio se espalha sobre tudo o que tenha a ver com o pai, e isso sempre a entristeceu. Só metade dela parece existir.
- O teu pai já morreu - dizem-lhe também a avó e os tios.
- Mas, se morreu, porque não dizem quem foi, morto ou vivo, preciso do meu pai.
Nunca precisara dele como agora que a mãe morreu, com aquele mal maldito que ninguém pronuncia. Nunca pensara tanto nele como agora, mas como poderia encontrá-lo sem ajuda!
- Como imaginas o teu pai?
- Imagino-o bonito e boa pessoa. Talvez seja de Maputo ou de outra cidade e a minha mãe se tenha perdido dele, antes mesmo de eu nascer, talvez seja de uma vila à beira da estrada...
- Pode ser que a tua mãe te tenha dito a verdade.
- Sim, mas, mesmo morto, não deixa de ser o meu pai. Algo em mim me leva a não acreditar que está vivo.
Tantas perguntas!


sábado, 14 de outubro de 2017

O menino pastor

Outro problema são as crianças órfãs que ficaram sem pais .
Algumas sobrevivem sozinhas (ou quase), outras, alguém da comunidade diz: "eu crio-a, vou levá-la para minha casa". 
Muitas vezes, o que acontece é colocá-la ao seu serviço,  numa espécie de meninos escravos, como o guardador de gado, de quem falo, hoje. 
- Tenho 13 anos, vivo em Massinga e guardo gado.
- Tens um  grande o rebanho!
- Não sei quanta cabeças de gado tenho, porque não sei contar, nunca fui à escola. O rebanho é da família, a maior parte, mas também é de outras pessoas, tenho de ir duas vezes ao rio, de manhã e à tarde, para poderem beber água. Tenho inveja dos meninos que vão a escola.
- Talvez, um dia ainda, possas ir à escola.  

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Quando o sofrimento é tão visível...

A jovem não estava bem. Mas, não queria falar, sobre o que lhe ia na alma, e eu respeitava o seu silêncio, o baixar da cabeça sempre que lhe falava, as hesitações no diálogo...
- O que tens?
- Não tenho nada - respondia, invariavelmente.
Por que sofreria daquela maneira? Parecia ausente, a anos luz do sítio onde estava, como se uma força superior a encaminhasse para dentro de si e lhe fechasse todas as portas.
Estaria enamorada? Podia ser uma paixão de adolescente, por algum colega da escola ou outro rapaz. 
Era muito bonita, com uns olhos salientes e um olhar penetrante, de uma beleza que a mim me parecia não ser igual à das outras meninas, aliás, todas são mais ou menos distintas; nunca tinha estado em sítio, onde com tão pouca gente, trinta ou quarenta, a diversidade étnica fosse tão evidente.
Um dia perguntei-lhe:
- Tens irmãos?
- Não tenho da parte da mãe, morreram. Só tenho da parte do pai.
Não fiz qualquer comentário. Passadas semanas, quando a relação comigo era maior, disse-me:
- Já não tenho mãe, a minha mãe morreu. 
Baixou a cabeça. O silêncio tornou-se ensurdecedor. Por que me tinha falado apenas dos irmãos? Talvez, porque só perguntei por eles. Ou, talvez, pela impossibilidade de falar da morte da mãe, tal era o sofrimento. 
Pensamos que tudo é banal, que tudo é passageiro; mas percebi, e cada vez com maior clareza, que assim não é. 
Por mais que o mal aconteça a todos e se generalize, deixa marcas e muitas. Virá esta jovem a ter apoio psicológico que visivelmente precisa? Não sei, temo que não, estamos tão longe das sociedades organizadas que conhecemos na Europa que falar num sistema de saúde em Moçambique é uma quimera. 





quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Casamentos prematuros, meninas simplesmente "vendidas"

Falo com uma jovem de dezassete anos que me fala dos casamentos prematuros, do que se passa na sua aldeia e nas aldeias do distrito de Massinga, na província de Gaza. 
- Meninas de treze, catorze anos, são obrigadas a casar, com quem ofereça o maior dote; um dote que pode chegar às dezasseis cabeças de gado.
- É estranho ouvir isto, digo-lhe. 
- Mas é assim. Um pai que tem uma filha está já à espera que a menina cresça para poder vendê-la, sim, que mais não é do que uma venda. A criança é dada em casamento a quem pode pagar mais por ela, seja novo ou velho, pode ser da idade dos pais ou até dos avós.
Oiço e penso na dura realidade destas meninas, na desdita que costumes ancestrais impõem. Na quase impossibilidade de sair disto, de como a modernidade está a anos luz, mesmo que haja traços exteriores, como a T-shirt, os jeans, a mochila…, duma modernidade globalizada que parece chegar a todo o lado, mas que, afinal, não.
Há redutos culturais  impenetráveis. Já não julgávamos isto possível.


terça-feira, 10 de outubro de 2017

Fugir de um destino, a menina orfã

É uma menina de catorze ou quinze anos. Corpo de adolescente, alta, magra, cabelo muito curtinho. O andar um pouco desajeitado, sempre de telemóvel na mão, um pouco agitada e com um olhar triste. Está no colégio há menos de um ano. Veio, porque a tia achava que ela só brincava – diz-me. Veio para estudar, passou para a 6ª classe, mas com dificuldades enormes de leitura e escrita. 
Talvez, tenha vindo para não se perder numa qualquer estrada ou esquina da vida. Veio, porque precisava sair de um ambiente que não podia ajudá-la. Isso é certo. Temendo que seja órfã e não sabendo até que ponto quer ou não falar sobre isso, nada pergunto, espero que fale, o máximo a que me atrevo é perguntar-lhe: 
- Quantos irmãos tens?
- Tenho dois irmãos, eu sou a mais velha, eles são mais novos, vivia com a minha avó, os meus irmãos estão com os pais deles. A minha mãe morreu, o meu pai morreu, o meu avô morreu...
Sinto um calafrio, até onde irá a lista que parece interminável?
Fico em silêncio. O que sei eu? Imediatamente, pensamos que foi a sida que os levou, mas talvez tenham morrido de malária, de desastre rodoviário ou de outra qualquer doença. 
A causa da morte não é indiferente, por estes lados, há um estigma, um não dito, que acompanha a vida destas crianças, cujos pais morreram de sida, como se, por não se nomear, tal doença desaparecesse. Ela carrega um grande sofrimento, mas não um destino. Por isso, está aqui. Vai estudar e ser alguém na vida.



segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O jovem artista

Encontrei-o, ao final da manhã, na marginal de Maputo, junto ao cais, onde se apanha o barco para Catembe. Segurava, numa das mãos, um conjunto de telas e tentava vender-me uma (ou as que pudesse, claro está). 
Diz-me: "Olá, senhora, veja as minhas pinturas, sou eu que pinto, sou um artista"!
"Sim, mas agora não tenho tempo, não quero comprar, não quero". E continuo, apressando o passo.
-"Fico à sua espera, quero mostrar-lhe o meu trabalho" - diz-me.
E ficou. Primeiro, era só para que eu visse as telas, mas depois usou todos os argumentos e mais um, insistindo sempre, mas sem ser, em nenhum momento, desrespeitoso ou incomodativo, pelo contrário, havia nos olhos daquele jovem uma bondade que me chegava, e depois era encantador a forma como falava da sua vida e da sua sensibilidade de artista. Estava convencida que era um artista, na assinatura lá estavam as iniciais do seu nome.
Escolhi uma das telas, e comprei-a. "Vou fazer um quadro e, quando o olhar, pensarei: onde estará o Paulo, o jovem artista moçambicano que, num dia de Novembro de 2010, encontrei na marginal de Maputo? Talvez, seja agora um artista famoso, espero que sim" - digo-lhe.
No dia seguinte, quebrou-se a magia, enquanto passeava pela baixa da cidade encontrei muitos “Paulos”, jovens (todos artistas) que vendem telas, todas iguais, usando exactamente as mesmas estratégias. Achei graça, é óbvio que para mim tanto importava. Aliás, se voltar a encontrar o Paulo, tratá-lo-ei por artista, vou falar-lhe de tintas e pincéis, de sentimentos e paisagens africanas, como no dia do nosso primeiro encontro. Ele pode não ser artista, mas carrega uma alma de artista. E isso é o que importa.